Tudo menos natural

ASD
8 min readJun 3, 2023

Com a vida frenética que temos, nas suas múltiplas dimensões (familiar, pessoal, social), por vezes torna-se complicado ou mesmo impossível avaliar toda a informação que nos chega com o detalhe devido. Por isso, tendemos a dar como adquiridos e normais vários pressupostos e conceitos, como forma de evitar o prolongar interminável de discussões e pensamentos. Nenhum de nós escapa a isto — só hoje, quantas coisas demos como adquiridas ao discutir um único assunto? Este acontecimento é natural — não podemos ficar enredados na origem e em todos os pressupostos da discussão — e até se pode argumentar que é necessário. Contudo, o conhecimento de tal ocorrência é veículo para a deturpação e sobre-simplificação de vários conceitos, para benefício de alguns. Hoje, focarei a atenção num destes e esmiuçarei os seus pressupostos, para que possamos ver, verdadeiramente, as suas bases. Falemos, então, da liberdade e da natureza dos mercados.

Diariamente, somos bombardeados com clamores por mercados livres, liberdade económica, não-sujeição dos mercados e menos interferências. Todos estes pedidos, mais ou menos desmedidos, caem na concepção de que os mercados funcionam perfeitamente per se, cabendo ao Estado uma regulação mínima para evitar falhas do mercado, como é o caso de monopólios ou concertações. Esta visão parte duma concepção de que o mercado, tal como o conhecemos, é natural ao ser humano. Mas será que os mercados são naturais? Os mercados podem e devem ser livres? E se sim, livres do quê? Será que existe liberdade económica, no sentido de que não existe sujeição dos mercados à sociedade e aos indivíduos que a compõem? Todas estas questões importam, se quisermos verdadeiramente sair da superficialidade do tema, mas, como as respostas não são favoráveis a quem veicula os pedidos, nunca são feitas — pelo contrário, esquivam-se da discussão (é normal que assim seja, caso contrário todo o castelo de cartas conceptual que construíram ruía).

A liberdade económica que nos tentam vender, quando afirmam coisas como “o mercado deve ser livre”, não é mais do que a simples não-sujeição dos mercados ao Estado e aos indivíduos, numa tentativa de os libertar das suas amarras. A liberdade económica é, então, vista como liberdade enquanto não-limitação: os mercados podem estar sujeitos a determinadas regras, mas devem ter o mínimo de interferência possível, sob risco de incorrermos em falhas do Estado, que são tão ou mais graves que as falhas do mercado. Contudo, esta forma de olhar para os mercados é extremamente simplista (talvez por isso aliciante). Na realidade, o contrário parece fazer mais sentido — nem os mercados são naturais, nem podem alguma vez ser livres. Para corroborar esta inferência, olhemos para o pensamento de Karl Polanyi.

A grande transformação

Polanyi foi um economista, historiador e sociólogo húngaro do início do século XX. O seu pensamento foi (e ainda é) revolucionário, apesar da assustadora simplicidade com que apresenta a sua tese. Recorrendo a alguns estudos antropológicos disponíveis na sua época, Polanyi contrariou a ideia de que os mercados seriam instituições naturais que se criaram no vazio, algo enraizado no pensamento económico-político desde o liberalismo clássico de Adam Smith (e que tinha, por fim, triunfado na viragem para o século XX). Usando vários exemplos de sociedades semi-primitivas, antes do aparecimento dos grandes Estados, Polanyi evidenciou que os mercados já existiam, mas que eram baseados sobretudo em trocas incrustadas em relações sociais. Isto significava que os mercados não tinham uma origem natural, nem que eram dominados pela concorrência e preços de mercado — tinham antes uma origem social, ficando inclusive próximos do que se designa actualmente por construção social: “there simply is no economy without government rules and institutions (…)”.

Segundo Polanyi, a ideia de uma economia de mercado, como um sistema autorregulado dirigido por preços de mercado, e nada mais do que isso, livre de interferências e habitado por agentes movidos pelo seu interesse próprio, ganhou fulgor com o desenvolvimento da revolução industrial, atingindo o seu pico intelectual e material na Belle Époque. A isto o autor designou de “grande transformação” (título do seu magnum opus), pois, pela primeira vez na história, estaria a ocorrer um desacoplamento generalizado entre sociedade e mercado.

O facto dos mercados não serem naturais, e estarem imbuídos em relações sociais que conferem um significado distinto à troca, infere directamente que estes nunca poderão ser livres da sociedade que lhes dá origem. Para explicar isto, Polanyi utiliza o termo embedded (incrustado): os mercados, devido à sua origem societal, estão incrustados em relações sociais e, por isso, não podem ser livres ou independentes das instituições que compõem a sociedade: “there is no such thing as a free market; there never has been, nor can there ever be”. Portanto, ao homo economicus que começava a vingar no início do século XX, Polanyi respondeu com o homem societal — o homem é um ser social, da qual apenas uma das suas facetas é económica. A história parece corroborar a versão de Polanyi: os mercados expandiram-se ao mesmo tempo que os Estados cresceram, mostrando que ambos andaram de mão em mão, justamente porque “o laissez-faire nada tinha de natural; os mercados livres nunca teriam chegado a existir por simples efeito da força das coisas”.

Polanyi vivenciou em primeira mão os acontecimentos do desacoplamento que mais tarde relatou na “grande transformação”. O início do século XX foi caracterizado por uma tentativa descontrolada de conquista autocrática de mercados pelos grandes industriais e latifundiários. Foi também um período marcado pela enorme desigualdade e riqueza herdada, pelos conflitos expansionistas, pelo aparecimento de forças marcadamente extremistas e pela desincrustação entre mercados, sociedades e Estados. Vários liberais da época, apologistas de um laissez-faire industrial, impediram inúmeros projectos sociais que permitiriam uma maior igualdade. Em última instância, este fervilhar de ingredientes, aliado às contradições inerentes do próprio sistema, criaram o pano de fundo para o despontar da Primeira Guerra Mundial e posterior presença e impacto de vários autoritarismos na Europa.

“A vitória do fascismo tornou-se praticamente inevitável pela obstrução dos liberais a qualquer reforma que envolvesse planeamento, regulação ou controlo.”

O duplo movimento e as mercadorias fictícias

A expansão desregulada dos mercados criou uma instabilidade generalizada no seio de todas as sociedades industriais e avançadas. No seguimento desse percurso, gerou-se um contra-movimento que tentou proteger a sociedade dos efeitos adversos de um mercado assim criado, nomeadamente pelo surgimento de partidos trabalhistas, socialistas e sociais-democratas. Esse choque de movimento e contra-movimento, tal como a dialética, em que a tese gera o seu contrário, teve a designação de duplo movimento. Polanyi diz-nos que, em particular, o contra-movimento, marcado por um assumir das rédeas do mercado pelos Estados, com mais regulação e interferência, “não ficou a dever-se a qualquer preferência pelo socialismo ou anti-liberalismo, mas exclusivamente à vasta extensão dos interesses sociais vitais afectados pelo mecanismo de mercado em expansão”. Deste modo, o economista desmistifica o argumento de que as várias crises que assolaram a Europa no início do século XX resultaram de intervenções estatais no mercado “livre”. Segundo Polanyi: “os apologistas do mercado repetem que, sem a intervenção das políticas dos seus críticos, o liberalismo teria cumprido o que prometia, e que a responsabilidade pelos nossos males não incumbe ao sistema concorrencial e ao mercado, mas às medidas que interferiram no sistema”. A esta consideração, que ainda hoje vemos veiculada de forma regular, Polanyi responde claramente: “afirmamos que a aplicação da concepção absurda de um sistema de mercado auto-regulado teria inevitavelmente destruído a sociedade.” De forma sucinta, o autor diz-nos que as várias “interferências” que surgiram para impedir o “mercado livre”, ocorreram por uma única razão: pelo falhanço das políticas liberais em garantir condições dignas de vida e de estabilidade.

Nesta linha de pensamento, Polanyi crê que os clamores por menos interferência, por forma a obter mercados livres, são um exercício fútil e contraproducente. Fútil, porque essa tentativa é utópica e está condenada a falhar. Contraproducente, porque os seus resultados práticos são distópicos e nefastos — autoritarismos, miséria, guerra e exploração.

Na segunda parte do seu magnum opus, Polanyi aborda três grandes sectores que designa como mercadorias fictícias: o trabalho, a terra e a moeda. No período anterior ao grande desenvolvimento económico da revolução industrial, estas três mercadorias estavam incrustadas em construções sociais (que podem, muito bem, ser abomináveis, como é o caso da escravatura). Contudo, com o surgimento dos mercados massificados, generalizou-se o seu tratamento como se de uma mercadoria se tratasse. Polanyi, nesse aspecto, é extremamente claro: “esse postulado, de que tudo o que é vendido e comprado deve ter sido produzido para venda, é obviamente falso”.

Estas três mercadorias fictícias marcam exemplos concretos da ruptura do pensamento de Polanyi, marcadamente institucionalista, com a ortodoxia liberal/neoclássica. Vejamos, sucintamente, o caso do salário/força de trabalho: para o pensamento neoclássico e do laissez-faire, o salário não é nada mais do que a venda da força de trabalho, cujo preço de mercado é igual à produtividade marginal desse mesmo trabalho. Para Polanyi, o salário é definido por um conflito social complexo, que se organiza por convenções colectivas, regulamentações, estratégias de organização e sindicatos. O salário é, então, o resultado da disputa social pela partilha do rendimento e não a transposição de uma qualquer mercadoria num mercado. Em suma, Polanyi diz-nos que existem componentes da vida em comunidade que até então nunca tinham sido mercadorias e que a sua existência como tal é o resultado de uma transformação contra-natural.

Polanyi e o Socialismo

O pensamento de Polanyi, por mais heterodoxo que seja para o paradigma liberal em que vivemos, não é extremista. Polanyi era assumidamente crítico do marxismo centralista e do determinismo histórico. Não advogava um planeamento central, nem tampouco a posse pública completa do sistema económico — defendia antes a existência de mercados com restrições várias, que fossem descentralizados e que cumprissem uma função e mandato social. A solução dos problemas sociais e económicos, que são indissociáveis, passariam, assim, por mais regulação ou medidas que fossem uma forma motriz para contrariar o mercado dito “livre”. Resumindo: Polanyi diz-nos que o mercado deve servir a sociedade e não o contrário.

A visão de sociedade para Polanyi é a de um socialismo democrático, baseado em instituições pluralistas e livres das amarras dos mercados financeiros/capitalistas: “o socialismo é, essencialmente, a tendência imanente de uma civilização industrial no sentido de superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática. É a solução natural dos operários industriais que não encontram qualquer razão para que a produção não seja diretamente regulada em termos políticos ou para que os mercados sejam mais do que um elemento útil, mas subordinado numa sociedade livre”.

Polanyi entende, ainda, o socialismo como uma tendência, e não como um fim em si mesmo. Ora, este pensamento é muito característico de alas clássicas da social-democracia: tornar os mercados e o sistema económico dependente da sociedade que lhes dá origem, através de uma maior interferência, regulação e dependência. Isto abre portas para várias concepções de social-democracia, nomeadamente a visão que não pretende abolir integralmente o capitalismo, ao não separar de forma completa capital e trabalho, mas subordiná-lo aos interesses da sociedade, de uma forma gradual.

Como vimos, só os pressupostos do “mercado livre” exigem muita discussão. Por isso, importa parar para pensar quando ouvimos e discutimos clamores vários e que, sobretudo, parecem inócuos — não é líquido que sejam, como este caso particular. Espero que o artigo tenha contribuído para que da próxima vez haja menos conceitos a serem dados como adquiridos, imutáveis e naturais, porque não o são.

Escrito por Hélder Fontes. Escrito segundo o antigo acordo ortográfico.

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